Produção de gás por Streptococcus thermophilus em Mussarela

05-02-2019 14:19:37 Por: Múcio M. Furtado, Ph.D, Senior Principal Aplication Specialist DuPont Nutrition & Health, Brasil

Produção de gás por <i>Streptococcus thermophilus</i> em Mussarela
A maioria absoluta dos fermentos que são usados na fabricação de Mussarela possui Streptococcus thermophilus que é o grande responsável pela aceleração do abaixamento do pH durante o processo, aumentando sua eficiência, em especial naquelas fábricas dotadas de linhas mais mecanizadas ou automatizadas. 

Mesmo sendo amplamente usado na fabricação de Mussarela (ou Pizza Cheese, particularmente nos Estados Unidos) no mundo todo, Streptococcus thermophilus é raramente mencionado nos meios laticinistas como um microrganismo que possa produzir gás. Considerando apenas o metabolismo de carboidratos Streptococcus thermophilus é uma bactéria homofermentadora, que degrada a lactose produzindo apenas ácido lático. No entanto, a produção de gás é fenômeno possível de ocorrer, por outras vias metabólicas, como tem sido registrado na literatura técnico-cientifica sobre os fermentos láticos e seu extenso papel na produção de queijos. 

O Streptococcus thermophilus é praticamente o único microrganismo lático que é capaz de produzir a enzima urease (ureia amidohidrolase), que pode metabolizar a ureia naturalmente presente no leite (cerca de 6,7 mM a 10 mM ou 0,4 a 0,6 g/litro). A urease catalisa a hidrolise da ureia para a formação de NH3 (amônia) e de CO2 (gás carbônico). Inicialmente, a ureia é hidrolisada para formar o ácido carbâmico, que por sua vez é transformado, em presença de água, em ácido carbônico e amônia. O ácido carbônico então dissocia-se formando CO2 mais água. Essas reações são apresentadas na Figura 1.

Produção de gás por Streptococcus thermophilus em Mussarela

A atuação da enzima urease requer a presença do metal níquel (Ni+2) e de um teor razoável de ureia no leite, e isto explica porque a reação não ocorre de maneira regular em todas as fabricações de queijos. A presença do níquel é imprescindível mas sendo um oligoelemento do leite, seu teor varia muito de acordo com a época do ano, região e alimentação dos animais.

Por outro lado o teor de ureia no leite também é crítico para que ocorra o metabolismo descrito. A ureia é um composto nitrogenado que faz parte da fração chamada NNP (nitrogênio não-proteico) do leite e seu conteúdo, bastante variável, tem uma estreita relação com o regime alimentar das matrizes leiteiras, além da época do ano, período de lactação, etc. Assim, devido à possíveis variações dos teores de níquel e ureia, os fenômenos aqui mencionados não são de registro rotineiro em fábricas de Mussarela. 

Há poucas cepas de Streptococcus thermophilus que não apresentam esta atividade através da urease. Estas cepas são de grande interesse da indústria de queijos visto que não interferem na curva de fermentação e nem produzem gás e, por isso, tem sido bastante pesquisadas nos últimos anos, através de técnicas de bio-engenharia.

As principais consequências práticas da atuação da urease na fabricação de Mussarela são:

- podem ocorrer atrasos na fermentação, já que a amônia liberada neutraliza o ácido lático, elevando o pH, como se demonstra na Figura 2. Desta reação de um ácido mais uma base, origina-se um sal, o lactato de amônia que, além de reverter ligeiramente a tendência de abaixamento do pH, teria ainda uma leve atividade anti-bacteriana (que poderia inibir parcial e/ou provisoriamente os microrganismos do fermento lático). 

Produção de gás por Streptococcus thermophilus em Mussarela

A Figura 2 apresenta processos que resultaram em duas curvas de fermentação. Em um deles (linha azul) foi utilizado uma cepa de Streptococcus thermophilus sem capacidade de produzir a enzima urease. Não houve atrasos no processo. Já no processo em que se usou uma cepa que produzia urease (linha vermelha), houve um nítido atraso na fermentação, com uma diferença de cerca de 0,30 pontos de pH após 3,25 horas de fermentação, quando registraram-se pH’s 5,10 e 5,40 respectivamente.

- em muitos processos de elaboração da Mussarela, ao final da fermentação observam-se “rebotes” de pH (subir ligeiramente, de 5,05 para 5,10 ou 5,15 por exemplo), o que pode também ser explicado pela formação de amônia. Estes conhecidos “rebotes” de pH são temidos pelos queijeiros, pois além de levar a pequenos atrasos no processo, não são bem explicados e provocam insegurança na decisão de filar ou não uma massa já praticamente fermentada.

- algumas produções de Mussarela podem apresentar grande numero de pequenas olhaduras biológicas espalhadas no interior das peças, como é apresentado na Figura 3. O fenômeno pode ocorrer em queijos jovens mas é mais comum em queijos já com várias semanas de armazenamento. O metabolismo da ureia é um processo contínuo durante a estabilização da Mussarela mas sempre haverá a exigência de se saturar a água do queijo com CO2 para somente então, após a acumulação gradual, surgir uma olhadura pequena. A formação de gás em queijos costuma ter origens diversas, mas certamente no caso da Mussarela, elaborada com abundancia de Streptococcus thermophilus (microrganismo termodúrico) é muito provável que possa ser atribuída  à atividade da urease.

Produção de gás por Streptococcus thermophilus em Mussarela

Nem o sabor da Mussarela ou sua funcionalidade são afetados por essas características metabólicas especificas do Streptococcus thermophilus. Mas a formação tardia de bolhas de gás em outros queijos além da Mussarela (como o Prato) não deve ser creditada somente ao Streptococcus thermophilus ou microrganismos esporulados como aqueles do gênero Clostridium. No caso específico de um queijo Prato há duas possibilidades: se é fabricado com cultivos tipo O (homofermentadores, contendo Lactococcus lactis subsp. cremoris e Lactococcus lactis subsp. lactis) e agregado de cerca de 10 a 20% de Streptococcus thermophilus, há uma grande possibilidade de se ocorrer a fermentação do ácido cítrico residual (presente em até cerca de 0,25% no queijo, já que não é fermentado por fermentos tipo O) por microrganismos NSLAB (non-starter lactic acid bacteria) tais como Lactobacillus casei ou Lactobacillus plantarum ou mesmo através do metabolismo da ureia por Streptococcus thermophilus. Em ambos os casos haverá liberação de CO2 e eventual formação de olhos de pequeno porte. 

O caso do queijo Mussarela é ainda mais complexo, pois há três possibilidades para formação tardia do gás, sempre excluindo-se uma eventual fermentação butírica: em primeiro lugar pode ser, obviamente, também através dos mesmos  microrganismos NSLAB já mencionados, uma vez  que existe abundancia de ácido cítrico na massa. Em segundo lugar, o fenômeno pode ocorrer também pela via da urease, através do metabolismo do próprio Streptococcus thermophilus. A terceira possibilidade seria através da degradação da galactose. Como é amplamente conhecido, Streptococcus thermophilus metaboliza a lactose, formando dois monossacaridios, glucose e galactose. O primeiro é rapidamente degradado para ácido lático pela Via da Glicólise, mas sendo o Streptococcus thermophilus um microrganismo galactose-negativo o queijo Mussarela pode conter resíduos consideráveis de galactose, que perduram por semanas. Microrganismos heterofermentativos da flora NSLAB como Lactobacillus brevis, Leuconostoc mesenteroides subsp. cremorisLactobacillus curvatus eventualmente presentes (por termorresistência ou recontaminação nos processos) podem metabolizar a galactose e formar CO2.

A presença de Streptococcus thermophilus em um queijo não requer necessariamente que o microrganismo tenha sido usado como fermento lático. Streptococcus thermophilus é um coco termofílico e termodúrico, que sobrevive à temperatura de pasteurização. Quando se trabalha com leite de má qualidade, grande parte da flora que resiste à pasteurização se compõe de Streptococcus thermophilus, o que ajuda a entender porque em certas situações na fabricação da Mussarela ocorre uma aceleração inesperada da fermentação. É devido à “ajuda” que esta flora endógena presta aos fermentos. É comum a presença de microrganismos termodúricos na seção de regeneração de pasteurizadores, formando biofilmes. Tal fenômeno é ajudado pelo fato de que algumas cepas de Streptococcus thermophilus são formadoras de EPS (exopolissacarídios, responsáveis por um problema no leite conhecido por “ropiness”), que são grandes polímeros exocelulares resultantes do agrupamento de moléculas de galactose e glucose. Assim, o leite já pasteurizado pode recontaminar-se com um elevado numero de microrganismos como Streptococcus thermophilus na saída do pasteurizador, ao circular pela seção de regeneração. Mais tarde, durante o armazenamento do queijo (Mussarela ou Prato, por exemplo) poderá haver formação de gás pelo metabolismo da ureia. Por esta razão sempre recomenda-se que em fabricas que manejam diariamente grandes volumes de leite, sejam feitas pelo menos duas limpezas manuais por ano nos pasteurizadores, não confiando-se somente na limpeza diária CIP. Assim, eventuais biofilmes podem ser removidos manualmente, o que ajuda muito na prevenção dos problemas aqui mencionados.

Compreende-se assim que quanto mais rico em ureia for o leite, maior é o risco de uma fermentação gasosa por parte de Streptococcus thermophilus, se outras condições foram atendidas (presença de Níquel, por exemplo).

A substância flurofamida, que é um potente inibidor da enzima urease, tem sido estudada como um meio de se manter estável o processo de acidificação (sem retrocessos ou “rebotes” de pH) assim como para evitar a formação de gás através do metabolismo da ureia pelo Streptococcus thermophilus. Eventualmente esta substância poderia estar presente na formulação de alguns fermentos concentrados, desde que haja amparo legal para tal.

Por tratar-se de uma característica da grande maioria das cepas de Streptococcus thermophilus torna-se muito difícil a prevenção dos problemas mencionados. Na prática muitas vezes ou o problema não ocorre (devido a baixos teores de níquel ou ureia) ou existe mas em tão baixa intensidade que nem é detectado. Concorre também para isto o fato de que boa parte da Mussarela elaborada no Brasil não chega a ser armazenada (estabilizada) por muitos dias.

Não são problemas incontornáveis e/ou que venham a afetar de maneira impactante o processo ou o produto final e por isso, aparentemente, a indústria de Mussarela vem convivendo sem maiores consequências com estes fenômenos já há muitos anos.

Colunista

Múcio M. Furtado

Múcio M. Furtado, Ph.D. Senior Principal Aplication Specialist DuPont Nutrition & Health, Brasil.